#4 O pião entrou na roda

Camila Cunha, jornalista científica e bolsista “Paulo Pinheiro de Andrade” no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel. Hoje, o assunto é quarentena…...

Camila Cunha, jornalista científica e bolsista “Paulo Pinheiro de Andrade” no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel. Hoje, o assunto é quarentena…

Para dar o tom: “Roda Pião”, de Dorival Caymmi

Um dia antes do término da quarentena, fechei as malas, me dediquei a uma limpeza superficial do cubículo e empacotei os lixos de acordo com as instruções de segurança. Era uma terça-feira ensolarada, quando finalmente abri a porta do n. 103. Um corredor longo e dois lances de escada me separavam da saída principal do prédio. 

Arrastei as malas uma hora antes do combinado com a carona para fora do prédio. A rua sem saída limitava o trânsito de pedestres. Segura, retirei a máscara do rosto para sentir a brisa leve que passava à sombra de um jacarandá. 

Ziva e Grace organizaram suas agendas para me ajudar com a mudança para o apartamento oficial, fazer a primeira compra de supermercado e trocar um pouco de dinheiro para emergências. Não demorou muito para o carro entrar no bolsão. A dinâmica do tempo mudou quando entrei no carro em direção à avenida principal de Rehovot, Herzl. 

Juntas éramos um time participando de uma gincana. As duas olhavam atentamente cada segundo do relógio. Os movimentos eram coreografados, sem espaço para improvisação. As malas foram deixadas no apartamento, e seguimos o trajeto mais curto para cumprir todas as tarefas. 

A lista de itens essenciais para sobreviver às primeiras semanas foram lidas em voz alta por mim ainda no carro. No supermercado, elas se dividiram na busca pelos produtos. Eu, atônita, esperei junto ao carrinho e acatei todas as sugestões sobre as melhores aquisições. Tudo escrito em hebraico. As compras foram colocadas no apartamento sem nenhuma ordem, e voltamos para o Instituto Weizmann de Ciências.

No almoço, os integrantes do laboratório se reuniram com pão pita, homus e tahini, descumprindo as regras do distanciamento social. As mesas foram arranjadas ao ar livre em um vão do prédio protegido do sol. Por alguns instantes voltei à vida antes da Covid-19. 

À tarde, o professor me apresentou as instalações do laboratório. Entrei em todas as salas e conversei pessoalmente com cada um dos alunos. Paramos apenas para um café turco com cardamomo e doces típicos no meio da tarde e seguimos para mais um tour guiado pelos jardins e prédios até as casas de vegetação.  

Tudo rodava muito rápido como um tufão. No final do dia, já em casa, sentada na escrivaninha, como um pião, minha cabeça ainda dava as últimas voltas como que por inércia. Tento pensar sobre o que aconteceu e refazer mentalmente o dia. As imagens passam borradas e distorcidas.

O corpo inteiro doía, da cabeça aos pés. Depois do banho, meu cérebro parecia um arquivo em branco com o cursor piscando, excitado para começar a digitar algo. A cada piscada, um batimento cardíaco e nada mais. Bloqueio. A única certeza foi estar grata pelo próximo dia. 

Revisão de texto: Natália Flores.

Crédito imagens: Camila Cunha.

Crédito capa: Nubia Navarro no Pexel.


Camila Cunha

Engenheira agrônoma pela Universidade de São Paulo, doutora em genética e biologia molecular (genética e melhoramento vegetal) e especialista em jornalismo científico pela Universidade de Campinas. Atualmente é bolsista "Paulo Pinheiro de Andrade" no Instituto Weizmann de Ciências em Israel.
3 Comentários
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    Sofia
    25 novembro 2020 at 9:28 pm
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    O que achou da Ziva e Grace? ? São suas colegas do projeto?? Foram calorosas quando te viram?? O que falaram sobre a pandemia?? Tá pegando aí tb??? Tenha uma ótima semana !!!

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    Maria do Socorro de Oliveira Brito
    26 novembro 2020 at 7:19 pm
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    É assim mesmo Camila, em pouco tempo tudo parecerá rotina. Tudo estará bem engrenado. Que bela experiência. Vivenciar um novo mundo em um Mundo Novo.

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    Susy
    13 dezembro 2020 at 8:29 pm
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    Sair do confinamento e isolamento total direto pra um dia super ativo… deixa o cérebro se sentindo pião mesmo kkk!!! Que bom que você foi tão carinhosamente assistida😊😊😊👏👏👏

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