Reflexões sobre a cidade vazia

Arte e especialistas da área de saúde mental nos ajudam a refletir sobre a crise atual do COVID-19...

A obra do pintor realista norte-americano Edward Hopper e do arquiteto e pintor brasileiro Flávio Ricardo, que retratam cenas urbanas, são usadas nesta reportagem para uma reflexão sobre o isolamento físico e a quarentena necessários para o enfrentamento da pandemia do COVID-19. Conversamos também com o neuropsicólogo Paulo Sérgio Boggio e o psiquiatra Paulo Amarante sobre esse momento crítico ao bem-estar mental. O momento é de “entrar-se e outrar-se” e sozinhos contemplarmos as possibilidades do que veio e do que virá.

O isolamento físico entre pessoas, o fechamento de estabelecimentos públicos não essenciais e a proibição de atividades coletivas começaram em 24 de março no estado de São Paulo, e seguem válidos até 10 de maio, de acordo com decreto assinado recentemente pelo governador João Doria (PSDB), com potencial prorrogação, para frear o espalhamento do vírus SARS-CoV-2 e evitar o colapso do sistema de saúde.

Apesar de longe do valor ideal de distanciamento físico (70%) na primeira quinzena de abril, já são duas semanas inteiras de cidades adormecidas. Da janela de um bairro central, vê-se uma ou outra pessoa que ainda insiste em sair de casa, apesar dos inúmeros avisos; alguns poucos entregadores em bicicletas indo e vindo; e raros, mas persistentes, carros que deslizam desinteressados por ruas desertas. As janelas mais iluminadas e os terraços aparecem como refúgios. As pessoas estão descobrindo esses espaços, antes pouco usados, para fazer refeições, observar a paisagem urbana ou dedicar-se a algum passatempo.

Quem olha para algo se apropria do que vê para projetar seus pensamentos sob ele. Portanto, são espectadores de suas próprias mentes

Anthony Miglieri (tese, p. 10, 2019)

No final de janeiro o Brasil teve o primeiro caso suspeito de COVID-19 e no final de fevereiro, a primeira confirmação. Os sintomas da doença aparecem entre 2 e 14 dias após a infecção – tipicamente febre, tosse e dificuldade para respirar. Muitos se recuperam sem precisar de tratamentos especiais, mas a doença pode evoluir para casos mais sérios e até fatais. Com um rápido espalhamento do vírus, o distanciamento físico e as quarentenas compulsórias fizeram com que quase um terço da população mundial experimentasse o mundo criado nas obras de Edward Hopper (1882-1967), pintor realista norte-americano.

As janelas são simbólicas na obra do pintor, como uma tela de cinema, oferecem um escape da realidade – da rotina repetitiva, da tristeza mundana ou do isolamento social. Em frente aos quadros de Hopper, o observador é também personagem, silencioso e contemplativo. O artista nos dá a chance de observar os momentos entre momentos, em que desespero e histeria são substituídos por quietude e até paz frente à desconhecida, mas inescapável solidão. 

Para ilustrar, selecionei três obras para você visitar nos museus onde estão expostas (clique nos links em vermelho). Em Sol Matinal (Morning Sun, 1952; Museu de Arte de Columbus, Columbus, Estados Unidos) vê-se uma mulher triste e pensativa olhando janela afora para um mundo intangível. Em Noctívago (Nighthawks, 1942; Instituto de Arte de Chicago, Chicago, Estados Unidos), obra icônica, o vidro dá à lanchonete um ar de refúgio para um casal que pouco tem a dizer um ao outro, um homem misterioso que dá as costas e um atendente reticente; o foco está no interior da lanchonete asséptica e quase clínica, que contrasta com o exterior de um vazio extraterreno, sem sinal humano. Por fim, em Escritório em uma Pequena Cidade (Office in a Small City, 1953; Museu Metropolitano, Nova Iorque, Estados Unidos), um homem melancólico contempla a paisagem urbana ainda durante o dia, provavelmente indiferente ao trabalho sobre a escrivaninha.

Inconscientemente, provavelmente, eu estava pintando a solidão de uma grande cidade

Edward Hopper apud Levin (1984)

O realismo como movimento artístico surgiu na Europa em oposição ao romantismo no final do século XIX com objetivo de retratar o cotidiano, os costumes e os problemas das classes média e baixa. Diferente de seus colegas entusiasmados com a expansão da urbanização e da industrialização no século XX, Hopper optou por retratar a alienação e a solidão nos espaços urbanos modernos: apartamentos, lanchonetes, escritórios, trens, salas de espera, etc. Assim como seus personagens, é pela janela que assistimos o desenrolar da pandemia do COVID-19, ilhados e solitários diante do vazio da cidade que, apesar da calma, esconde inquietação.

Pela janela

“Assim que correu a notícia pela cidade da primeira confirmação de caso do COVID-19, 18 de março, o prefeito dispensou a gente do trabalho e decretou a quarentena de todos os órgãos da administração municipal até 30 de abril. Desde então eu estou praticando o isolamento. Eu moro sozinho em um apartamento de 70 metros quadrados em São Carlos. Eu saí duas vezes para ir ao supermercado até descobrir o sistema de entregas e não estou saindo mais. A família tem perguntado se está tudo bem pelo isolamento. Para mim não é um grande problema, principalmente por causa do desenho”, comenta Flávio Ricardo, artista e arquiteto da Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano da cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, sobre a pandemia. 

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“Casa para Alugar Alameda das Crisandálias” (abr. 2020) de Flávio Ricardo, guache e lápis de cor em papel, São Carlos, Brasil. Pintura realizada da janela do apartamento de Flávio Ricardo durante a pandemia do COVID-19.

Flávio Ricardo

O gosto pelo desenho apareceu ainda na infância, quando Flávio copiava personagens de histórias em quadrinhos. Quando estudante de nível técnico em edificações e, depois, de graduação em arquitetura, os desenhos de observação urbana eram demandas do currículo. “As professoras pediam que saíssemos e desenhássemos uma cena do bairro, uma casa… A primeira vez na vida que eu sentei na rua para desenhar algo que eu estava vendo diretamente foi ainda no colégio”, relembra Flávio.

Em 2009, já como arquiteto, Flávio se encantou pelas aquarelas de paisagens urbanas feitas pelo artista e também arquiteto alemão Florian Afflerbach, o Flaf. O artista usava o tempo livre depois do trabalho e aos finais de semana para retratar a cidade em que morava e compartilhava o trabalho na plataforma da organização global sem fins lucrativos Urban Sketchers com sede em Washington, Estados Unidos, que reúne artistas do mundo todo. Em 2013, Flávio conheceu pessoalmente o Florian e fez oficinas com ele e outros artistas, entre eles Gérard Michel (Bélgica), Omar Jaramilo (Equador) e Lynne Chapman (Inglaterra), e a partir daí o artista aprendeu novas técnicas e o desenho virou rotina. 

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“Parte de casas vistas à noite, a partir da minha varanda” (abr. 2020) de Flávio Ricardo, guache e lápis de cor em papel, São Carlos, Brasil. Pintura realizada da janela do apartamento de Flávio Ricardo durante a pandemia do COVID-19.

Flávio Ricardo

“Antes da pandemia, eu costumava sair para desenhar a noite e descobri muitas coisas, por exemplo, o ritmo de abertura e fechamento do semáforo, o barulho da eletricidade da iluminação pública… O desenho nos ensina a observar e registrar o contato com a obra humana construída, que é a cidade. No livro ‘Desenhando com o Lado Direito do Cérebro‘, de Betty Edwards, aprendi que desenhar é mais aprender a ver do que aprender uma habilidade manual. A gente desenha aquilo que acha que sabe daquilo que está sendo observado, ao invés daquilo que realmente está chegando aos olhos. À noite os sons de pessoas falando e dos automóveis são reduzidos, e passamos a ouvir sons antes inaudíveis, sons estranhos, vemos formas que a gente não distingue ao longe e tudo isso é preenchido pela imaginação”, disse Flávio.

“Seria muito arriscado, diante da pandemia, desenhar na rua, porque toda vez alguém vem conversar. No primeiro momento, a perspectiva de 40 dias sem trabalho e sem poder sair de casa me pareceu penosa até que algo me ocorreu”, relembra e completa “O apartamento tem uma janela na cozinha virada para o lado Oeste, com vista para uma vegetação alta que impede uma visão ampla; tem uma varanda com uma vista de 270 graus e duas janelas voltadas para o Norte. Com essas visões limitadas que eu tenho aqui, eu não imaginava possível encontrar tantos temas de desenho. No momento, estou registrando esses recortes que eu tenho do mundo exterior. Ainda estou longe de esgotar todos os temas e pontos de vista da varanda e das janelas, sem contar os temas do interior do apartamento!”

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“Casa na Avenida Antônio Blanco” (mar. 2018) de Flávio Ricardo, guache e lápis de cor em papel, São Carlos, Brasil.

Flávio Ricardo

Flávio encontrou no passatempo uma forma de trabalhar a mente em tempos de isolamento físico: “Desenhar envolve silêncio, solidão e isolamento. Mesmo no meio de outras pessoas, você se fecha nos seus pensamentos e nas suas observações. Esse é o estado que eu sempre busco e me sinto bem, o da contemplação”. Através da contemplação do corriqueiro e da sua síntese em uma obra de arte, a beleza ao redor aparece nítida mesmo em meio a calçadas desleixadas, casas mal conservadas e fiação aparente. “O desafio do desenho em meio à pandemia é buscar algo universal no que é particular. O universal vem das técnicas de composição, da paleta de cores clássicas, das regras de proporção e o particular, do insignificante do cotidiano”, finaliza. 

Além da janela

Hopper nasceu em uma cidade à beira do rio Hudson no estado de Nova Iorque, Estados Unidos, em 1882. A comunidade de classe média alta em que cresceu era rural e conservadora na religião, moral e costumes. Desde a infância desenhava. Como profissão, dedicou-se a ilustração e arte comercial para ter estabilidade financeira. Quando terminou seus estudos em artes e foi morar em Paris por quase um ano (além de outras viagens ao país entre 1903 e 1910), suas pinturas tomam novos contornos de cor, luz e forma.

Até a década de 1920, suas pinturas pouco chamaram atenção de críticos, estudiosos e colecionadores de artes. Somente em 1923, após a exposição de seis aquarelas e a compra de uma delas pelo Museu do Brooklyn, que o artista passa a ter notoriedade. A partir daí, o retrato da solidão urbana americana passa a ser tema recorrente de suas obras; ilustrando personagens sentados, pensativos e contemplativos ao invés de multidões e tráfego. Em 1956, Hopper aparece na capa da revista Time já celebrado como ícone da arte realista norte-americana. 

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Capa da revista TIME com o pintor Edward Hopper (24 de dezembro de 1956).

O artista viveu em uma época turbulenta – a primeira (1914-1918) e a segunda (1939-1945) guerras mundiais, a grande depressão (1929) e o início da guerra fria (1947) – de greves, protestos, desemprego e incertezas em relação ao futuro. Ele observou de perto a mudança brusca nos modos de vida, o crescimento dos grandes centros urbanos, o colapso da economia e o sofrimento da população marginalizada.

Como um homem introvertido, intelectual e reservado, mantinha uma vida privada e reclusa com a esposa Josephine com pouco contato social – passava os dias debruçado em leituras de poesia, literatura, drama e filosofia. Sua obra reflete não a realidade em si, mas o seu olhar sobre o tempo em que viveu, que incluem anti-urbanismo, anti-industrialização, superioridade moral da vida rural, fragilidade dos relacionamento interpessoais, principalmente, determinados pelos espaços de convívio social. Cenas urbanas incomuns para os olhos menos atentos são documentadas pelo artista, como indivíduos deslocados no espaço dominado por concreto, e despertam sentimentos de perda, alienação, solidão e desespero.

Quando estamos sozinhos, temos tempo para considerar o que veio antes e o que acontecerá a seguir

Anthony Miglieri (tese, p. 10, 2019)

Mundo vazio, mente cheia

Para algumas pessoas a cidade representa desordem, superlotação, modernidade, poluição, violência e sofrimento, mas vê-la vazia contrariando essas visões pode ser ainda mais aterrorizador, como descreve Tom Slater, pesquisador da Universidade de Edimburgo em estudos urbanos e geografia, em um de seus artigos. “Uma cidade vazia à noite, capturada parada, é sempre mais ameaçadora e mais sinistra do que um retrato animado ou extremo de medos urbanos”, escreve.

“A interpretação que a gente tem do mundo depende de vários elementos, como objetos, cidades, paisagens, pessoas e, também, do contexto no qual encontramos esses elementos. O contexto atual é bastante atípico e tudo é muito especulativo. Na minha visão pessoal, o impacto de uma cidade vazia por conta de uma epidemia talvez seja diferente do impacto de uma cidade vazia por uma guerra ou por uma ameaça terrorista ou, simplesmente, por que é noite. Da observação cotidiana, vejo pessoas achando beleza na cidade vazia, percebendo coisas que antes não percebiam, etc. Mas também vejo pessoas assustadas, preocupadas com a possibilidade de aumento da criminalidade, com medo de andar sozinhas, etc.”, pondera Paulo Sérgio Boggio, professor e pesquisador em neuropsicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sobre o esvaziamento das cidades resultado do isolamento físico necessário frente à pandemia de COVID-19.

Para Paulo Amarante, psiquiatra, pesquisador da Fiocruz e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), o momento é de introspecção e reflexão sobre o presente e o futuro. “Muito mais do que cidades vazias à noite… vejo momentos talvez de calmaria. Vivendo sob um capitalismo voraz, nós nos exigimos muito e viramos dia e noite trabalhando. Hoje as noites estão mais tranquilas, mais calmas. Os aspectos positivos são muitos para reavaliação, reconstrução e reinvenção de nós enquanto cidadão, familiar, amigo, pessoa”, comenta Amarante.

Para entender os sentimentos conflitantes comuns em momento de isolamento físico, é preciso diferenciar e categorizar o isolamento, como explica Amarante. “Existem muitas formas de isolamento, uma delas é o isolamento psiquiátrico de pessoas diagnósticas com alienação mental. Esse isolamento compulsório é uma medida científica e é mais marcante, agressiva e invasiva do que o auto isolamento e até o autoexílio (espiritual ou religioso). Atualmente, estamos em um isolamento diferente, feito de forma consciente pela maioria das pessoas. É um isolamento de autopreservação frente a uma pandemia para conter a transmissão de um vírus. De forma nenhuma é um isolamento imposto por motivos políticos, sociais ou comportamentais. É uma medida tomada coletivamente, o que muda a natureza desse isolamento.”

O contexto influencia como percebemos a situação. “Eu estou aqui isolado, mas não considero esse isolamento dentro da visão mais clássica e tradicional da psiquiatria, como causador de depressão, ansiedade ou disparador de surto psicótico, tentativa de suicídio ou alcoolismo. Neste momento de crise, nós nos sentimos isolados dentro de um corpo social e coletivo e nos sentimos solidários”, comenta Amarante. E finaliza: “Podemos fazer desse isolamento uma imersão interna. Acho que é momento de a gente ‘entrar-se e outrar-se‘, cuidar de nós e dos outros, das pessoas que estão próximas e que a gente não tinha tempo de conversar ou ouvir. Acompanhar, claro, um pouco das informações e notícias, mas não se ocupar delas o dia inteiro, porque são repetitivas, o que cria uma sensação de esgotamento e desespero com o agravamento das notícias. E usar as mídias sociais para o contato. Esse isolamento não é político, autoritário, compulsório ou involuntário, mas sim de uma consciência coletiva internacional. Isso faz com que a gente se volte para dentro de si e para dentro dos outros.”

Bibliografia

MIGLIERI, A. Night windows: portraits of loneliness in the frames of Edward Hopper and film noir. 2019. 46 f. Monografia (Honors College) – Ball State University Monografia, Muncie. 2019.

SLATER, T. Fear of the city 1882-1967: Edward Hopper and the discourse of anti-urbanism. Social & Cultural Geography, v. 3, n. 2, p. 135-154, 2002. 

LEVIN, G. Edward Hopper: an intimate biography. Nova Iorque: Crown, 1984. 96 p.

Ministério da Saúde. Coronavírus: sobre a doença. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 7 abr. 2020.

Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico 03 de 21 fev. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 7 abr. 2020.

Fonte para os pesquisadores entrevistados: Agência Bori

Revisão do texto por Natália Flores.

Agradecimento à Carol Fradsen pela indicação de Flávio Ricardo.

Crédito imagem de capa: Flávio Ricardo.

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Assita ao filme “Shirley: Visões da Realidade” (2014) de Gustav Deutsch, que narra a história americana pela vida de Shirley, uma atriz ficcional, entre as décadas de 1930 e 1960 trazendo vida a 13 pinturas de Edward Hopper. 

“Shirley: Visões da Realidade” (2014)


Camila Cunha

Engenheira agrônoma pela Universidade de São Paulo, doutora em genética e biologia molecular (genética e melhoramento vegetal) e especialista em jornalismo científico pela Universidade de Campinas. Atualmente é bolsista "Paulo Pinheiro de Andrade" no Instituto Weizmann de Ciências em Israel.
2 Comentários
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    Murilo Sergio Romeiro
    22 abril 2020 at 8:44 pm
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    Parabéns, Flávio! Seus desenhos de São Carlos, vistos de suas janelas, são bastante inspiradores para todos que convivem hoje com esse isolamento forçado pela pandemia do novo corona vírus. É sempre um prazer ver o trabalho de um amigo fazer sucesso dentro e fora da comunidade de Urban Sketchers. Grande abraço. Murilo

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    Francisco Augusto da Silva Lopes
    22 abril 2020 at 10:11 pm
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    Parabéns, Flávio. Você confirma que não há motivos feitos… nós os embelezamos. Grande abraço.

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