Elke Cardoso: o solo é vivo

Elke Cardoso fala sobre a carreira de cientista e sua pesquisa em microbiologia do solo...

Todo mês no Planteia, perguntamos para cientistas da área de ciências agrárias sobre influências, contribuições e desafios da carreira. Neste mês, conversamos com Elke Jurandy Bran Nogueira Cardoso, pesquisadora e professora titular (sênior) do Departamento de Ciência do Solo, da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’ (campus Piracicaba) da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP).

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Sempre tenha autoconfiança e amor próprio para fazer aquilo que você acredita

Elke Cardoso
O que a influenciou a seguir carreira científica?

Sempre gostei de estudar e aprender coisas novas. Esses são os meus maiores prazeres até hoje. Quando eu era aluna da quarta série primária, minha professora pedia para eu rever a matéria em casa e ensinar a um coleguinha de classe. Assim fui me acostumando a dar aulas particulares aos colegas. No segundo grau, percebi que gostava de dar aulas. Mais tarde, quando comecei a pesquisar e a orientar alunos de graduação e de pós-graduação, vi que fazer pesquisa com alunos que também gostavam de aprender era muito mais prazeroso, pois via-se o crescimento intelectual e a satisfação de um jovem em pleno desenvolvimento de seus talentos. Sou apaixonada pelo que faço até hoje! Além disso, meu pai foi professor universitário, muito considerado pelos alunos, o que, sem dúvida, me inspirou também. 

Qual a motivação que direciona o seu trabalho?

Sem dúvida meu trabalho é direcionado pelo prazer. Sou orientadora na pós-graduação há mais de 50 anos. Hoje já aposentada, continuo nessa carreira, porque a convivência com os jovens é uma necessidade. Hoje trabalho gratuitamente, como professora sênior. Conviver com os jovens em um ambiente de amizade, confiança e carinho, em grande harmonia e visando o crescimento intelectual como um todo, é tudo de bom!

Quais as contribuições que você fez para a ciência?

Formei-me em agronomia e depois fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado em fitopatologia. Embora, sempre tenha gostado muito de biologia e microbiologia em geral, eu logo percebi que me interessava mais pela parte dos microrganismos promotores do crescimento de plantas do que pelos patógenos dos vegetais. Então, especializei-me, cada vez mais, em microbiologia e bioquímica do solo. Na década de 1970, essa área científica estava ainda muito pouco desenvolvida, carecendo de conhecimentos básicos e com poucos cientistas envolvidos.

Entre meus primeiros “achados científicos” estava o fato de que todas as plantas tinham seus tecidos internos ocupados por numerosos fungos e bactérias, o que hoje já é bem conhecido não só para as plantas, como para os animais e os seres humanos (o tal microbioma humano). Isso, por sua vez, me levou a cogitar acerca do controle biológico de doenças vegetais, o que se tornou assunto de minha tese de mestrado. A partir daí dediquei-me a temas de pesquisa que hoje são relacionados a sustentabilidade, diversidade ecológica, saúde do solo, simbiose entre plantas e microrganismos e genética vegetal. O foco da pesquisa está na relação entre a microbiota do solo e o crescimento vegetal, seja no estudo enzimas do solo, nos resíduos orgânicos e sua compostagem, no uso de compostos como fertilizantes do solo, entre outros.

Orgulho-me por ter iniciado o estudo do controle biológico de doenças das plantas no Brasil. Estive entre os pesquisadores que iniciaram o estudo das micorrizas no Brasil. Depois de muita insistência consegui convencer meu departamento a introduzir no currículo a disciplina “Microbiologia do Solo”, depois “Biologia do Solo”, como obrigatória na ESALQ. Descrevi pela primeira vez que as micorrizas associadas a árvore araucária (nome científico: Araucaria angustifolia) são do tipo endomicorrízicas arbusculares e não ectomicorrízicas, como ocorre nas demais árvores coníferas (definição desses jargões no final da entrevista).

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Elke Cardoso, pesquisadora e professora em microbiologia do solo na ESALQ/USP, sentada junto a estátua de Luiz de Queiroz, fundador da ESALQ, e no fundo, prédio central.

Meus estudos contribuíram para aumentar a sustentabilidade da agricultura brasileira e recuperar solos degradados. Liderei um time de pesquisadores no estudo do efeito do consórcio (plantio conjunto) do eucalipto com acácias (arbustos e árvores leguminosas, capazes de associação com microrganismos fixadores de nitrogênio atmosférico) para aumentar a produtividade e a sustentabilidade dessa cultura.

Recentemente, demonstramos a superioridade produtiva do cultivo de milho em manejo orgânico em comparação com o cultivo convencional. Comprovamos o efeito positivo da fertilização da cana-de-açúcar com composto à base de resíduos da produção de açúcar e álcool e inoculação de bactérias solubilizadoras de fosfato. Em experimento de campo, comprovamos que esse tipo de manejo é capaz de produzir 20 toneladas a mais de cana-de-açúcar em comparação com cana-de-açúcar que recebeu adubação recomendada, que incluía o superfosfato triplo. Este resultado foi divulgado recentemente em mídias sociais (YouTube) e sites oficiais (CNPq, FINEP e ESALQ).

Quais são os maiores desafios das cientistas no Brasil?

Como pesquisadora mulher nessas áreas, os desafios são os mesmos experimentados pelos colegas homens, embora, normalmente, contando com menos credibilidade da comunidade científica. Aqui refiro-me a lutar pela sustentabilidade, contra o excesso de uso de insumos industriais na agricultura e silvicultura e contra as atividades de manejo convencional da agricultura, que resultam em degradação do solo, desmatamento, monoculturas, solos sem cobertura, deterioração dos serviços ecossistêmicos, exagerada aplicação de adubos sintéticos e pesticidas, que contaminam o solo e eliminam grande parte da fauna terrestre e dos microrganismos, e assim por diante.

Na minha época, agronomia era um campo de estudo considerado mais adequado aos homens. Quando aluna de agronomia eu era exposta a comentários de muitos professores, colegas ou outros homens sobre o fato da agronomia não ser profissão para mulher. Tive dificuldades imensas para alugar uma casa para formar uma república feminina, tive de lutar pelo nosso direito de frequentar o centro acadêmico, etc. Mas nada disso abalou a minha jornada, eu lutei contra essas ideias arcaicas e com o tempo nós, as moças empoderadas (como se diz hoje em dia) ganhamos todas essas batalhas. Fala-se muito hoje em dia em assédio moral e sexual, mas acho que eu tinha uma postura que já de início impedia esses acontecimentos, de forma que muito raramente percebi qualquer coisa nesse sentido.

Algum conselho para as jovens aspirantes a cientista?

Só permaneça em uma profissão da qual você realmente gosta. Procure um local de trabalho saudável, agradável e benfazejo. Procure ser amigável e colaborativa, mas não se deixe dominar ou pôr de escanteio por colegas, especialmente quando for por machismo. Sempre tenha autoconfiança e amor próprio para fazer aquilo que você acredita e será feliz!

Sobre a cientista convidada

Elke é engenheira agrônoma formada pela ESALQ/USP, fez doutorado em patologia de plantas na Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, e pós-doutorado em microbiologia do solo na Universidade Georg-August, na Alemanha. Já escreveu mais de 150 artigos em jornais científicos arbitrados, além de 15 livros e 25 capítulos de livros para editoras nacionais e internacionais. Ao todo orientou 130 alunos, entre iniciação científica, treinamento técnico, trabalho de conclusão de curso, especialização, pós-graduandos (mestrandos e doutorandos) e pós-doutorandos. Atualmente é professora titular sênior de microbiologia do solo, leciona nos cursos de pós-graduação em Solos e Nutrição de Plantas da ESALQ/USP e Ecologia de Ecossistemas do Centro Universitário Vila Velha, Espírito Santo.

O solo é o habitat de inúmeros microrganismos!

Um dos tópicos de estudo da Elke são as micorrizas. A palavra vem do grego, em que mykes significa fungo e rhiza, raiz. Portanto, micorrizas são fungos do solo, que formam associações benéficas e saudáveis com as raízes das plantas (simbiose). Existem vários tipos de micorrizas na natureza. Uma classificação as divide em: endomicorrizas, que penetram no interior das células radiculares; e ectomicorrizas, que se mantém ao redor das células, sem adentrá-las. Nessa relação, fungo-raiz, os fungos ajudam as plantas a crescer. As hifas (verdadeiros “braços” do fungo) ajudam na absorção de água e nutrientes do solo, principalmente fósforo, zinco e cobre, e funcionam como extensões das raízes da plantas aumentando a área explorada. Também, o emaranhado de hifas, forma um manto ao redor das raízes, protegendo-as da invasão de patógenos.

Essa associação mutualística e simbiótica é um dos fenômenos mais interessantes da natureza e dela depende a produção sustentável de alimentos, como comentou a pesquisadora Elke. Hoje, com os descuidos na preservação da natureza e uso indiscriminado de químicos (pesticidas, inseticidas, herbicidas e tantos outros cidas) a existência desses delicados microrganismos está em perigo. A nossa existência na Terra é sustentada em grande parte pelos serviços prestados por esses seres microscópicos. Proteger ecossistemas naturais e priorizar práticas agrícolas com menor impacto ambiental são imperativos para um futuro possível.


Camila Cunha

Engenheira agrônoma pela Universidade de São Paulo, doutora em genética e biologia molecular (genética e melhoramento vegetal) e especialista em jornalismo científico pela Universidade de Campinas. Atualmente é bolsista "Paulo Pinheiro de Andrade" no Instituto Weizmann de Ciências em Israel.

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