Fellipe Mello in loco : autonomia científica

Neste episódio da série In loco, Angélica Franceschini conversa com Fellipe Mello sobre o doutorado e os desafios da ciência.

Esse aqui é o Fellipe!

Eu conheci o Fellipe Mello na transição entre o doutorado e o pós-doutorado. Assisti a sua defesa de tese na Unicamp em 2019. A defesa é uma cerimônia. O candidato ao título de doutor apresenta o trabalho de pesquisa a uma banca composta por quatro examinadores. O orientador da tese é o mestre de cerimônia, introduz os integrantes da banca e indica a vez de falar de cada um. Cada examinador faz uma arguição e perguntas ao candidato. Fellipe discorre sobre a pesquisa desenvolvida por mais de quatro anos diante de uma plateia formada por colegas de pós-graduação, familiares e amigos.

No final, após uma reunião fechada entre orientador e banca examinadora, o resultado é anunciado na sala. “Fellipe Mello faz jus ao título de doutor!”, anunciou Gonçalo Pereira, o orientador da tese.

A notícia é recebida com alegria. A atenção de todos se volta para o Fellipe, para cumprimentá-lo. Eu imaginava um doutor como um mestre, com mais idade, sábio e com anos de experiência na sua área de especialização. Vê-lo doutor tão jovem foi uma surpresa. A pesquisa de doutorado do Fellipe foi bem sucedida, com a publicação de artigos científicos e patentes. A escrita da tese foi adiantada pelo convite de continuar no pós-doutorado também no Laboratório de Genômica e bioEnergia (LGE) da Unicamp, onde realizou o doutorado.

fellipe-001

Fellipe, 29 anos, natural de Resende, no Estado do Rio de Janeiro, é engenheiro químico e fez doutorado direto (ou seja, sem passar pelo mestrado) pelo Programa de Pós-Graduação em Bioenergia, um programa multidisciplinar oferecido em conjunto pelas três grandes universidades do Estado de São Paulo – USP, Unicamp e UNESP.

Antes de ingressar no doutorado, ele pesquisou por orientadores com atuação em linhas de pesquisa de seu interesse e escolheu o Prof. Gonçalo Pereira, coordenador do LGE. Através do e-mail, os dois iniciaram uma conversa que culminou no aceite para a inscrição no doutorado e elaboração do projeto de pesquisa.

A trajetória do Fellipe impressiona por dois quesitos: a área do curso de graduação não limitou a escolha de uma carreira científica em outra área, a biologia; e foi vantajosa já que as habilidades de engenheiro o ajudaram a encontrar soluções rápidas aos problemas para a condução de sua pesquisa.

Início da jornada

Em retrospectiva, Fellipe se achava muito imaturo aos 17 anos de idade para escolher uma profissão. Na época (e ainda hoje), ser “bem sucedido” era ser médico, advogado ou engenheiro. Assim, no primeiro ano de vestibular, decidiu pela medicina, biologia e engenharia mecatrônica. Na segunda tentativa, após um ano de cursinho e já mais maduro, a opção foi engenharia química. O curso juntava duas áreas que o interessavam: engenharia e química, a matéria que ele mais gostava no ensino fundamental e médio.

Na graduação, ele experimentou a vida de cientista em dois estágios de iniciação científica. Em um deles, estudou a fibra do coco, descartada pela indústria de leite de coco, como fonte de bioenergia. No outro, aplicava a cromatografia para purificação de proteínas específicas da soja. No final do curso, o estágio supervisionado foi realizado na área de biotecnologia agrícola na Bayer. Antes de formar-se engenheiro foi contrato pela empresa e participou de projetos de desenvolvimento de embalagens biodegradáveis e transgenia de cana-de-açúcar. A experiência de dois anos na empresa multinacional foi decisiva para mudar os rumos de sua carreira para a biologia, em particular a genética de microrganismos.

fellipe-002

A base do projeto de doutorado de Fellipe, com foco na identificação de leveduras mais eficientes para produzir etanol a partir de fibras e resíduos vegetais, teve inspiração nesses primeiros anos de sua formação – energia renovável e sustentabilidade ambiental. O trabalho de pesquisa com a levedura Saccharomyces cerevisiae buscou identificar genes responsáveis por características complexas que definem ao cientista o que é “ser uma levedura eficiente”, como suportar altas temperaturas e acidez durante a fermentação de açúcares, por exemplo. Essas características complexas, denominadas quantitativas, são poligênicas, ou seja, governadas por diversos genes. A localização desses vários genes no genoma são chamadas de QTLs (sigla em inglês para Quantitative Trait Loci).

O projeto de doutorado apresentava um desafio: era necessário fazer o screening de um número muito grande de linhagens (ou seja, caracterizá-las tanto em nível fisiológico quanto genômico), o que manualmente levaria muito tempo. Assim, com as habilidades adquiridas no curso de engenharia, Fellipe desenvolveu um software, que ele mesmo programou no MATLAB, para agilizar o cálculo de parâmetros relacionado ao crescimento de leveduras a partir de dados coletados automaticamente por um robô. Segundo o cientista, “a engenharia trabalha com uma praticidade e um modus operandi voltado para a resolução de problemas”. Além de ser uma ferramenta essencial para o projeto de Fellipe, o software também é usado no dia a dia e em outros projetos de alunos do laboratório.

fellipe-003-1

Vida de cientista

Os horários de trabalho de Fellipe, assim como o de muitos cientistas não são fixos. As atividades são programadas sob demanda. Períodos de espera são comuns e incluem: o tempo do próprio processo científico, o tempo dos protocolos e técnicas e o tempo para a compra e chegada de insumos necessários para o experimento. Nesses intervalos, Fellipe se dedicava aos estudos e escrita de artigos e projetos. Muitas vezes, a opção foi trabalhar nos finais de semana, com o laboratório vazio e tranquilo, a pesquisa acontece sem interrupções ou outras demandas.

fellipe-004

Embora a vida de um cientista seja ocupada, cultivar outras paixões fora do laboratório revigora. Para Fellipe, a prática de atividades físicas, seis vezes por semana, é uma forma de se conectar consigo mesmo. “Eu gosto muito de endorfina”, afirma. Os esportes individuais são os favoritos do cientista, que pratica triathlon, crossfit, corrida e ciclismo. Outro passatempo é a fotografia.

Apesar das políticas atuais de desmonte da ciência e educação superior no Brasil, Fellipe relembra a liderança mundial que o país exerce na ciência. O Brasil está em 13° lugar como país que mais produziu pesquisa científica no mundo entre 2013 e 2018, segundo relatório da empresa Clarivate Analytics. No momento, o meio acadêmico e a pesquisa científica enfrentam grande instabilidade que pode desencorajar futuros cientistas e pesquisadores brasileiros. Fellipe segue firme, cada dia mais apaixonado pela ciência, e entende que o seu lugar como profissional e cidadão está na pesquisa. Depois do pós-doutorado, ele quer continuar trabalhando como pesquisador na academia ou em uma empresa.


Continue explorando! Veja a história de outros jovens cientistas com quem conversei.

É só clicar no título escolhido.

Créditos

Entrevista e roteiro original de Angélica Franceschini

Escrito por Angélica Franchescini e Camila Cunha

Câmera, direção e produção de Camila Cunha

Fotografia e edição de vídeo/imagem por Angélica Franceschini

Supervisão de Germana Barata, Gonçalo Pereira, Antonio Figueira

Participação de Luan Beschtold, Jennifer Wellen, Fellipe Mello e Danielle Scotton

Locações no Laboratório de Genômica e bioEnergia (LGE), Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e externas na Praça da Paz e Ciclo Básico na cidade universitária “Zeferino Vaz”, município de Campinas, São Paulo

Entrevistas e filmagens entre maio e outubro de 2019.

Com agradecimento ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), Grupo Gestor de Tecnologias Educacionais (GGTE/Unicamp) e Júnior Paixão

Apoio da Fapesp – Programa Mídia Ciência (2018/17906-6 para CC; e 2019/07344-3 para AF)

CC BY-ND

Siga nossas redes sociais!

Caracterizar leveduras com ajuda do robô

Fellipe Mello caracterizou diferentes linhagens de levedura durante o seu doutorado. O meio de cultura, rico em açúcares, minerais e nutrientes para crescimento e multiplicação das leveduras, é transferido manualmente para placas com 96 poços. Cada poço receberá uma única linhagem de levedura. Todo o procedimento é manual e realizado no fluxo.

A placa é vedada com filme plástico e incubada a 30ºC em estufa. As condições são ideais para o crescimento das colônias.

No dia seguinte, o meio de cultura antes límpido agora está turvo, o que indica que o crescimento e a multiplicação das leveduras foram bem sucedidos. O pré-inóculo está pronto para começar os testes de crescimento no robô!

Os testes de fermentação (ou microfermentação) são realizados automaticamente pelo robô, uma plataforma de pipetagem. A placa é aberta e colocada no robô, o pré-inóculo é inoculado em nova placa e dessa vez o crescimento e a multiplicação de cada linhagem será acompanhado.

A cada intervalo de tempo pré-definido, um sensor realiza a medida de parâmetros que juntos serão usados em fórmulas complexas para definir qual a linhagem mais eficiente naquela condição de crescimento em teste. No LGE, o Fellipe é o responsável pela manutenção e operação do robô.

No computador ligado ao robô, as configurações adequadas do experimento são definidas, como tempo e parâmetros a serem coletados a cada ponto.

Neste experimento, o robô inocula as linhagens em um meio de cultura contendo um inibidor de crescimento, o HMF (um aldeído presente em hidrolisado de cana-de açúcar).

A máquina monitora cada poço da placa, fazendo leituras de densidade ótica (OD), quanto mais turvo o meio de cultura, maior será a OD e, portanto, maior o número de células da levedura. A cada 30 min o valor da OD é medido e armazenado pelo software desenvolvido pelo Fellipe.

Durante o experimento, o software constrói as curvas de crescimento das leveduras. Com os dados em mãos é possível analisar quais as melhores linhagens capazes de crescer na presença do “contaminante”, ou seja quais leveduras são mais tolerantes ao HMF.

Volte para a história do Fellipe! Clique na barra abaixo